CONSIDERAÇÕES RELATIVAS À EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
Hugues Lenoir
Este texto não tem por pretensão retomar o conjunto dos temas e escritos, contemporâneos ou não, sobre a educação e a pedagogia libertárias. Ele tenciona ser uma reflexão livre, ancorada ao mesmo tempo sobre leituras e práticas aplicadas em formação de adultos.
“Andragogia” libertária – por pouco que se aceite esse termo de origem canadense – regularmente praticada hoje, mas demasiado raramente, para não dizer nunca, descrita ou teorizada. Minha intenção será aqui geral, não normativa, e limitar-se-á a algumas evocações, históricas ou de princípios.
Sem voltar a um debate essencial, que consistiria em apontar as diferenças entre educação libertária e pedagogia libertária, parece-me necessário ressaltar que a educação libertária não se limita unicamente à pedagogia (enquanto conjunto de instrumentos, métodos, procedi- mentos e atitudes), mas que talvez ela a englobe. De todo modo, a educação não poderia ser delegada a um corpo qualquer de especialistas, ainda que fossem libertários. Essa educação, que passa, no entanto, pela freqüentação de profissionais e instituições orientados com esse fim, não poderia permanecer aí confinada. A educação libertária diz respeito a todos e todas. Os pedagogos, quer dizer, aqueles e aquelas a quem se confia a conduta das crianças (sentido etmológico de pedagogia), não podem e não têm essa pretensão, por sinal, de conduzir sozi- nhos e à perfeição a grande aventura educativa. Em um primeiro tempo, essa exigência im- plica, em matéria de educação, uma pluralidade de locais, espaços e atores. Depois, quando o processo educativo é engajado, ela propõe dar a cada um os instrumentos e os recursos úteis a sua própria trajetória. O educador, apagando-se, então, em proveito do “facilitador”, tal como foi definido por Carl Rogers. Não basta praticar as pedagogias ditas ativas. É preciso orientá- las e dar-lhes sentido e um sentido, ou seja, fazer delas instrumentos e não fins. Elas são uma espécie de “astúcia” pedagógica, a serviço da autonomia que os “aprendizes” devem conquistar.
Texto publicado em Le MondeLibertairede 28 de julho a 25 de setembro de 2000, Fora de série, no15. Anteriormente publicado na revista Les Tempsmaudits.
Também parece importante ressaltar aqui a natureza pragmática dessa pedagogia. Com efeito, a pedagogia libertária não é uma teoria da educação surgida exnihilo, quer dizer, do cérebro genial de um pensador alemão refu- giado em Londres, por exemplo, mas o con- junto da teoria anarquista: é uma teorização permanente das práticas difusas, ricas e, algu- mas vezes mesmo, contraditórias. A pedago- gia libertária nasce também de uma longa fi- liação histórica; afirma-se como o produto de histórias e pensamentos singulares e coleti- vos. Ela é una, por causa dos princípios que a movem, e múltipla pelas práticas e pelos locais de exercício por meio dos quais ela rei- vindica-se.
Em um primeiro tempo, e sem vontade de exaustividade, evocarei alguns grandes pre- cursores e práticos dessa corrente pedagógica, quase sempre ligados a locais e experiências reais ou simbólicas. Excluirei disso, por falta de espaço, outros, às vezes mais conhecidos. Em seguida, evocarei alguns princípios regu- ladores que fundam e animam essa pedagogia.
Precursores e práticos da pedagogia libertária
Sem remontar à Antiguidade grega, eu gos- taria de evocar Rabelais: aquele que, segundo minha opinião, foi sem dúvida um precursor, sem tê-lo sabido, dessa forma de educação livre. Com efeito, Rabelais, em sua época, funda na abadia de Thélème – local diferentemente simbólico – com seu “Faz o que quiseres” uma reflexão pedagógica inovadora, para não escrever, revolucionária. Ele considera que o primeiro motor da educação, entre pessoas socializadas, é verdade, é uma atitude ativa e livre num espaço liberado do máximo de coa ções. Tratase de um local no qual a educação constrói-se pela liberdade e a liberdade pela
educação. Toda a problemática da pedagogia libertária parece-me estar contida nesse movimento dialético.
Outro precursor: Charles Fourier, que, em um espaço de vida e de produção, o falans- tério, imagina um modo educativo na liber- dade das paixões (dir-se-ia, hoje, dos desejos, das pulsões, das motivações e dos interesses). Ele preconiza não apenas a educação integral, aquela da mão e do espírito, cara aos anar- quistas – de Pierre-Joseph Proudhon a Sébas- tien Faure – mas igualmente a utilização da descoberta e da conduta de experiências múltiplas, permitindo a tentativa e o erro. Desse conjunto de experiências nasce a verdadeira escolha do indivíduo, quanto a suas aprendi- zagens e a sua atividade futura. O que devemos observar, e nisso Fourier faz da educação uma aposta e um ato de responsabilidade coletiva, é que a educação não está artificial- mente desconectada da vida da cidade (o falanstério), e da produção necessária à sobrevi- vência econômica da organização. Essa educação está integrada ao social sem estar submissa a ele; ela alimenta-se do real econômico sem dele depender totalmente; longe disso.
Proudhon herdará essa concepção da educação, essas utopias pedagógicas. O fundador da noção de autogestão, que funda a esperança revolucionária nas capacidades das classes operárias autônomas, considera que a escola não deve ser separada da vida e da oficina, que o “par” educação-produção é fundamental, não apenas para assegurar a formação integral e pluridisciplinar dos produtores, mas também para assegurar a independência em relação ao Estado e a alguns outros, das estru- turas educativas. Lógica de ação que reencon- traremos com Sébastien Faure e La Ruche, ou, em nossos dias com Bonaventure.
Fernand Pelloutier, animador das Bolsas do Trabalho e inventor, com milhares de outros, do sindicalismo revolucionário, inscreve- se também nessa corrente da educação integral e livre, ligada a uma preocupação de uso social do conhecimento, contudo, também, sem transformar a criança em um pequeno produ- tor competitivo e demasiado amiúde explorado nas oficinas. O único objetivo da educa- ção é preparar para essa condição futura de produtor consciente, pela pluridisciplinari- dade e pela multiplicidade das técnicas. A importância de Pelloutier, na minha opinião, é que ele responsabiliza o sindicalismo quanto ao problema educativo. Perfeitamente ciente do que está em jogo na educação para os poderes políticos e clericais, ele considera que ela é o melhor instrumento de dominação do Estado. Por conseqüência, o sindicalismo, que é o instrumento natural de emancipação da classe operária, deve capreenderr o fato educativo para liberá-lo da tutela dos poderes e, ao mesmo tempo, trabalhar pela liberdade de todos. Eis por que ele trabalhará para que as Bolsas do Trabalho tornem-se um local de edu- cação dos trabalhadores, para que seja a obra dos próprios trabalhadores, como os sindica- tos da C.N.T. espanhola fizeramno em sua época. Tratase, então, não apenas de “ins- truir para revoltar”, mas também, a fim de for- jar a consciência, qualificar para melhor resis- tir e, com o tempo, a fim de construir o socia- lismo na liberdade. Para concluir essas rá- pidas considerações, evocarei La Ruche, local real, de fato, que aplicou esse desejo de fazer do espaço educativo um instrumento a serviço da humanidade, tomando cuidado para não enfeudá-lo a poder algum. Com efeito, como o faz Bonaventure hoje, Sébastien Faure ten- tou fazer viver uma pequena república educa- tiva, apoiando-se em sua auto-suficiência eco- nômica e na solidariedade ativa de estruturas e de organizações sociais participando de seu financiamento. Essa vontade de “não depender” parece-me essencial, embora isso não di- minua em nada as outras experiências de pe- dagogia libertária conduzidas aqui e acolá; com efeito, ela afirmase como o único meio de dotar-nos de locais educativos autônomos e, por hora, próprios do movimento libertário. Com efeito, os poderese, em primeiro lugar, o poder de Estado, que as financiatanto podem tolerar estruturas educativas dissidentes, marginais e libertárias, desde que estas não difundam ou não se inscrevam num mo- vimento social poderoso e organizado, quanto podem, é óbvio, pôr um fim a essas experiên- cias tão logo elas representem um incômodo ou um perigo para seu sistema.
Eis por que a auto-suficiência econômica é essencial, em fim de contas; é, sem dúvida, nessas capacidades de auto-suficiência, anco- radas no social, que está em jogo o futuro da pedagogia libertária. Que nasçam, então, cem pequenas repúblicas educativas e que o sindicalismo revolucionário atue nelas com respon- sabilidade.
Os princípios reguladores da pedagogia libertária
Por sinal, quanto aos princípios da pedagogia libertária, determe ei na enunciação de alguns grandes invariantes que parecem fundamentais. Pareceme, hoje, – mas não é o filtro da educação dos adultos que age aí? – que a finalidade essencial desse processo da educação pela liberdade consiste em que o in- divíduo, na medida do trabalho educativo, participa cada vez mais na organização e na pro- dução de seus saberes. A educação, nisso, é co-constituinte do anarquismo, porquanto visa a autorizar o indivíduo a produzir-se como pessoa autônoma, zelosa em desenvolver pelo conhecimento, e o conhecimento de si, sua liber- dade e a liberdade dos outros, e que ela propõese a dar a todos e a todas um espaço no qual se realizar social e profissionalmente. Como escrevia Pestallozzi, pedagogo suíço do século XVIII, o projeto educativo tenta permitir a cada um “fazer-se livre”, tendo em vista o que ele é. Os teóricos e os práticos da pedagogia li- bertária irão também nesse sentido, como J.- J. Rousseau, antes de Pestallozzi, preconizou-o para Emílio, que ele se propunha a fazer “primeiramente homem”. L’EncyclopédieAnarchistediz, sem ambigüidade, em relação a isso, que: “a educação tem por objetivo educar a criança para que ela possa cumprir o destino que ela julgar melhor, de tal modo que em toda ocasião, ela possa julgar livremente quanto à conduta a escolher e ter uma vontade assaz forte para confrontar sua ação com esse juízo”. Assim, o objetivo da educação libertária, e a fortiori, da pedagogia libertária, consiste em participar da elaboração de um indivíduo livre
– livre para agir e pensare capaz de produzir um discurso crítico segundo suas próprias escolhas. Nisso, o projeto anarquista de edu- cação ultrapassa a simples acumulação de saber e propõe-se a construir um indivíduo capaz de análise e recuo crítico.
Rumo a indivíduos livres e autônomos
Se “a liberdade é o coroamento do edifício educativo”, formar o espírito “é pô-lo de sobre- aviso contra todas as causas subjetivas (inte- resse pessoal, amor-próprio, preguiça, depen- dência do outro, princípios dogmáticos, gosto pelo maravilhoso), que nos impedem observar e julgar ou nos induzem ao erro em nossas observações e nossos juízos”.1
A educação libertária afirma-se como uma pedagogia racionalista, e mesmo, científica que recusa fazer da criança, e mais tarde do adulto, um crente na anarquia. Ela prega um indiví-
duo que, após análise e reflexão, tentará, even- tualmente com outros, construir o anarquis- mo. Ela não é, pois, contrariamente a inúme- ras doutrinas pedagógicas, uma máquina de reproduzir e descerebrar, mas, ao contrário, um modo de produção de indivíduos livres e autônomos, capazes de escolher seu modo de engajamento social.
A educação libertária e seu corolário, a pe- dagogia, visam, como já o propunha William Godwin, “a aprender a pensar, discutir, lem- brar-se e a questionar-se”.2
O conhecimento, mesmo se ele é
indispensável, não é um fim em si.
O resultado da educação não é uma ca- beça bem cheia que oferece ao indivíduo todos os meios para agir, tanto na esfera do trabalho manual quanto na esfera do pensamento e do trabalho intelectual. Ele se propõe a dotar o indivíduo, sem negligenciar nem esquecer as influências externas, dos instrumentos de sua autoconstrução.
Além disso, a educação libertária – a pedagogia Freinet e a pedagogia institucional inspirar-se-ão nela amplamente – é também uma escola da vida e dos funcionamentos so- ciais. A criança deve, então, educar-se e ser educada na liberdade e no respeito pelo outro, adulto ou criança. Nas reuniões, escrevia Ja- mes Guillaume, as crianças serão completa- mente livres: “elas próprias organizarão suas brincadeiras, suas conferências, estabelecerão um bureaupara dirigir seus trabalhos, árbi- tros para julgar suas divergências etc. Elas se habituarão, assim, à vida pública, à responsa- bilidade, à mutualidade; o professor que tive- rem livremente escolhido para dar-lhes um en- sino não será mais para elas um tirano detes- tado, mas um amigo que elas ouvirão com prazer.”3
Para além da modernidade e do idea- lismo do discurso, convém ressaltar que o projeto libertário questiona funda- mentalmente o estatuto do par saber/ poder na situação educativa. Eis por que ela foi e ainda é, em muitos locais, incômoda e antecipadora das socieda- des futuras. Com efeito, sem se iludir, também, o poder não pertence mais àquele que sabe (o professor), mas, em princípio, a todos e a todas. O saber é a resultante, não mais de uma assimi- lação passiva, mas de um trabalho in- dividual socializado ou de uma ativi- dade coletiva. O educador não está mais lá para transmitir um saber acadêmico, emanado de diretrizes e programas au- toritários, mas para favorecer entre os aprendizes a produção de conhecimento em função de seus centros de interesse ou de sua preocupação do momento. O professor desaparece descentrando-
se, e torna-se um apoio à aprendizagem, que só tem por missão ajudar os aprendizes “a en- contrar as respostas para suas perguntas, seja na experiência, seja nas reuniões com os ca- maradas, seja nos livros, e o mais raramente possível respondendo-lhes diretamente”.4
Trata-se simplesmente de transformar em ato a mui célebre fórmula de Blanqui no espa- ço educativo “nem deus (onisciente) nem mes- tre (onipotente)”.
Uma atitude de vida
Para concluir essa rápida evocação de al- guns princípios de pedagogia libertária, eu gos- taria de acrescentar duas observações. A pe- dagogia libertária, de início, não é uma peda- gogia do instrumento, mas uma pedagogia da démarchee da atitude. Isso quer dizer que ela não funda seus resultados no objeto da mediação – tal ou qual livro, tal ou qual método, tal ou qual suporte – mas na aptidão do grupo e de seu animador a pôr em obra um processo educativo na liberdade. Ela é uma intenção permanente em ato, daí suas fragilidades, e não uma crença na infalibilidade do método, daí sua força. A pedagogia libertária é uma pedagogia pragmática, não-dogmática, que repousa antes de tudo em alguns princípios simples e, sobretudo, na consciência e na par- ticipação ativa daqueles e daquelas que a põem em obra em situação e num contexto.
Minha segunda observação – mas ela não é inútil aqui? – consistirá em insistir no fato de que a pedagogia libertária só tem sentido se ela é se faz ato, concebida e guiada pelos
próprios aprendizes, em resumo, se ela é feita para (e pelos) os educados e não para (e pelo) o educador. Não se trata apenas de se dar pra- zer, conquanto isso também seja recomendado, mas de agir no interesse dos “cidadãos em aprendizagem”.
A educação e a pedagogia libertárias são princípios em ação, mas igualmente em ques- tionamento permanente, é óbvio, praticando- se em todos os lugares, livre ou clandestina- mente; não há espaço e tempo reservados a seu exercício, e, sem sabê-lo, alguns e algu- mas, preocupados com o desenvolvimento das crianças e dos adultos, praticam-nas muito bem. É por isso que podem reivindicar-se delas a equipe de Bonaventure, a do Liceu Autogerido de Paris e, por sinal, indivíduos isolados, em
uma classe Freinet, no âmbito da pedagogia institucional, numa ZEP [Zona de Educação
Prioritária], em formação de adultos.
A pedagogia libertária, assim como o pro- letariado, não tem pátria.
Notas:
1 Todas essas citações foram extraídas do artigo “Éducation”, de E. Délauney em l’Encyclopédieanarchiste.
2 Citado por Jean-Marc Raynaud. T’areta gueub à la révo. Éditions du Monde libertaire. Paris. 1987.
p. 191.
3 idem. p. 209.
4 Paul Robin, citado por Nathalie Brenand in Cem- puis, une expérience d’éducation libertaire à l’épo- que de Jules Ferry. Éditions du Monde libertaire.
Paris. 1992.
Hugues Lenoir
é pesquisador e professor de Ciências da Educação e diretor do Centro de Educação Permanente
da Universidade Paris X – Nanterre.
Traduzido por Plínio A. Coêlho
BIBLIOGRAFIA
Nathalie, Brenand. Cempuis,une expérience d’éducation libertaire à l’époque de Jules Ferry. Éditions du Monde libertaire. Paris. 1992.
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Coletivo, sob a direção de Patrick Bournaud et Ahmed Lamihi, Les Pédagogiesautogestionnaires, Ivan Davy editeur. Vauchrétien, 1995.
Coletivo, sob a direção de Jean Houssaye, Quinze Pédagogues,leur influence aujourd’hui, Armand Colin, Paris, 1994.
Sébastien, Faure. Ecrits pédogogiques, Editions du Monde libertaire, Paris, 1992.
Roland, Lewin. SébastienFaureet «la Ruche», Cahiers de l’lnstitut d’histoire des pédagogies liber- taires, Ivan Davy éditeur, 1989.
Sutherland, Neil Alexander. Libresenfants de Summerhill, Éditions La Découverte, coll. Folio, Paris.
Carl, Roger.Liberté pour apprendre. Dunod, Paris, 1971.